Desafios para o DOT nas cidades brasileiras
O Desenvolvimento Orientado pelo Transporte já é utilizado no mundo todo e está sendo implantado em cidades como Teresina (PI) e Natal (RN) no Brasil
O Desenvolvimento Orientado pelo Transporte (DOT) é uma estratégia alinhada ao desenvolvimento urbano sustentável, que realiza o planejamento da mobilidade urbana integrado ao uso e ocupação do solo. Por exemplo, a implantação do DOT busca o adensamento construtivo e populacional no entorno do transporte coletivo de massa, focando na criação de uma cidade mais compacta com uso misto do solo, aproximando o local de residência e trabalho (BID, 2021)*.
Esse assunto já foi destaque em alguns textos aqui do blog e sabemos que, no Brasil, ainda há inúmeros desafios a serem enfrentados para se conquistar uma cidade mais sustentável orientada ao transporte, dentre eles podemos destacar três desafios chaves: o sistema de transporte coletivo, o marco regulatório e a arrecadação municipal.
Figura: Os três desafios chaves para viabilização do DOT nas cidades brasileiras
Fonte: elaboração da autora, 2021.
Para exemplificar os principais desafios encontrados nas cidades brasileiras, podemos citar as condições de duas cidades brasileiras, Teresina (PI) e Natal (RN), cidades que a Urban Systems estudou a aplicabilidade do DOT nos últimos dois anos, identificando esses três desafios citados.
Figura: Dois exemplos de estudos realizados para implantação do DOT nas cidades de Teresina (PI) e Natal (RN).
Fonte: elaboração da autora, 2021.
Transporte coletivo precário
Em muitas cidades brasileiras o transporte coletivo é precário e acaba não atraindo naturalmente a população a se estabelecer no entorno dele. No caso da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, por exemplo, seu sistema ferroviário é precário e com baixa utilização pelos natalenses em função de diversos fatores como elevado intervalo de tempo entre os trens, falta de integração com outros modais, falta de acessibilidade nas imediações das estações, sem calçadas e com terrenos baldios, trazendo um ambiente de insegurança.
Figura: Exemplo da Estação Santa Catarina em Natal que não apresenta calçadas no seu entorno, sem sinalização e acessibilidade ao pedestre.
Fonte: elaboração do Consórcio Mcrit, Urban Systems e Levisky, 2021.
Essa situação reflete diretamente o comportamento do mercado imobiliário nos últimos anos na cidade de Natal (RN), que não está orientado ao sistema de transporte público, em que a cidade está sendo construída dando as costas à linha férrea.
Figura: O mercado imobiliário em Natal não está orientado ao sistema de transporte público
Fonte: elaboração do Consórcio Mcrit, Urban Systems e Levisky, 2021
Já a capital do Piauí, Teresina, enfrenta os mesmos problemas estruturais mencionados anteriormente, no entanto, é possível verificar que a cidade possui um recém implantando sistema de corredores de ônibus e um metrô, que, contudo, conta com uma baixa aderência da população. De modo geral, a população considera o sistema de transporte local precário, preferindo utilizar principalmente motocicletas e automóveis para se deslocarem pela cidade. De acordo com a STRANS (2021)*, apenas 21% da população de Teresina usa o sistema de transporte por ônibus, sendo que a maioria prefere utilizar o motorizado individual que chega até metade do tempo que seria gasto utilizando o ônibus.
Figura: Aumento da taxa de motorização da população de Teresina, resultando em um aumento da utilização do transporte motorizado individual.
Fonte: DENATRAN, 2020.
Marco regulatório
A maioria das cidades brasileiras possui marco regulatório que não favorece o desenvolvimento orientado ao transporte, com zoneamentos que não induzem o desenvolvimento urbano associado ao sistema de transporte. Por exemplo, o Plano Diretor de Teresina apresenta um zoneamento que incentiva o adensamento ao longo dos corredores de ônibus, mas ao mesmo tempo mantém o mesmo incentivo para as áreas de maior interesse de atuação do mercado imobiliário e que não possuem um sistema de transporte.
Figura: Em Teresina temos uma área de grande interesse do mercado imobiliário, sem presença de corredores de ônibus, que apresentam os mesmos coeficientes de aproveitamento máximo dos eixos de transporte coletivo.
Fonte: elaboração da autora com base nos dados da prefeitura de Teresina, 2021
Além disso, os incentivos oferecidos para fachadas ativas, permeabilidade visual, entre outros, em forma de descontos na outorga onerosa do direito de construir, são insignificantes do ponto de vista do empreendedor imobiliário, sendo incapazes por si só de influenciar as características dos empreendimentos locais e interferir na lógica urbana vigente. Por exemplo, comparando os valores médios do m² da Zona Leste de Teresina, vemos que mesmo um desconto de 100% da outorga onerosa representaria apenas 1,1% do valor do empreendimento no mercado
Figura: Representatividade do desconto na outorga onerosa do direito de construir em relação ao valor de mercado dos empreendimentos.
Fonte: elaboração do Consórcio Mcrit e Urban Systems, 2020
A cidade de Natal, apresenta um Plano Diretor em processo de revisão, que apesar de possuir uma proposta de adensamento ao longo dos eixos viários estruturantes e estações ferroviárias, quando combinadas aos coeficientes de aproveitamento da bacia de esgotamento propostos, vemos uma composição que dificulta a atuação do mercado imobiliário, criando um mosaico desconexo com a dinâmica do território, não possuindo uma estratégia clara de direcionamento do desenvolvimento urbano associado ao sistema de transporte.
Figura: Distribuição de coeficientes de aproveitamento máximos no bairro Potengi em Natal, com uma composição que não estimula o adensamento no entorno das estações de trem de Soledade e Santa Catarina.
Fonte: elaboração do Consórcio Mcrit, Urban Systems e Levisky com base na Minuta da Revisão do Plano Diretor de Natal de 2021.
Dificuldades na arrecadação municipal
Para viabilizar economicamente um projeto são necessários mecanismos de arrecadação, dentre eles a possibilidade de recuperação das mais valias fundiárias. Entretanto, ainda diversos municípios apresentam dificuldades em aplicar esses instrumentos.
Natal, por exemplo, apresenta uma baixa arrecadação histórica por meio da outorga onerosa do direito de construir devido a sua fórmula de cálculo que leva a uma baixa arrecadação, sendo que a base de cálculo da outorga é o custo unitário básico de Construção (CUB), resultando em uma fórmula incapaz de absorver automaticamente a valorização imobiliária causada pelas intervenções públicas e cobra proporcionalmente mais das áreas menos valorizadas e menos das áreas mais valorizadas, quando comparado o valor da outorga em relação ao VGV de um empreendimento nessas áreas. Esse fato se comprova a partir da análise a seguir, que na Zona Leste de Natal (área mais valorizada) paga-se proporcionalmente menos outorga em relação ao VGV do empreendimento em relação a Zona Norte de Natal (menos valorizada).
Figura: Comparativo entre a porcentagem da outorga onerosa do direito de construir (OODC) em relação ao Valor Geral de Vendas (VGV) dos empreendimentos nas regiões Norte e Leste de Natal.
*valor de venda médio observado na pesquisa do mercado imobiliário
Fonte: Urban Systems, 2021.
Além disso, outros mecanismos de arrecadação, como o IPTU, apresentam desafios de arrecadação devido a presença de elevada irregularidade fundiária e elevada inadimplência dos contribuintes em Natal, chegando até 70% de inadimplência em alguns bairros da cidade. Fora isso, em Natal, temos uma planta genérica de valores muito defasada em relação ao valor de mercado, sendo que essa diferença pode chegar até 80% do valor de mercado.
Figura: Comparação do valor venal do imóvel (com base da Lei nº 3.882 de 1989 com valores atualizados para o exercício de 2021) em relação ao valor de mercado praticado em cada uma das regiões de Natal
Fonte: Urban Systems, 2021.
Então, como implantar o DOT?
Para se pensar em desenvolver estratégias de DOT é necessário um planejamento sistêmico entre a mobilidade urbana, marco regulatório e instrumentos de arrecadação municipal, envolvendo as diversas secretarias municipais e órgãos públicos para planejar e coordenar um projeto de sucesso. Para isso, é fundamental a realização de estudos aprofundados sobre o contexto local, seus principais desafios e quais serão as estratégias para superá-los.
No contexto de Natal, por meio de estudos, identificou-se a necessidade de realização de uma série de intervenções urbanas para qualificar o território, por meio da conexão intermodal, qualificação da caminhabilidade do entorno do sistema de transporte, criação de atrativos turísticos e de lazer, geração de oportunidades de ensino, incentivos à criação de novas empresas, entre outras intervenções com foco na transformação do território e atração da atuação do mercado imobiliário no local.
Como costumamos enfatizar, não é possível utilizar uma única forma de implantação de projeto ou solução para as cidades brasileiras e suas singularidades. Cada solução é única para cada território dado o contexto local, abrangendo intervenções que vão muito além do melhoramento apenas do sistema de transporte, mas com foco na melhoria da qualidade de vida da população e criação de uma cidade mais sustentável.
Sua cidade está repensando o seu planejamento urbano? Conte com a Urban Systems para soluções inovadoras e aplicáveis.
Conteúdo elaborado por Carollina Hitomi, Analista de Desenvolvimento Urbano da Urban Systems
Fontes:
CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos
CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos – Projetos
Prefeitura de Natal – Plano Diretor
Prefeitura de Teresina – Semplan
Prefeitura de Teresina – Mapas interativos
Mauro Proença
Texto incrível!